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3 de abr. de 2007

Artigo: Ainda há juízes no Brasil

O RECENTE veto presidencial à emenda nº 3 do projeto de lei que institui a Super-Receita, destinada a racionalizar a fiscalização de tributos, confunde o cidadão comum. O dispositivo vetado impedia que a autoridade fiscal, por si mesma, sem decisão judicial, viesse a desconsiderar pessoa jurídica legalmente constituída no âmbito da qual fossem reconhecidas relações de trabalho, com ou sem vínculo empregatício.

Segundo o preceito repelido pelo presidente da República, se a autoridade fiscal desconfia da lisura de uma sociedade prestadora de serviços, formada por jornalistas, advogados, artistas ou médicos, deve recorrer ao Judiciário, sem ser dado ao fiscal simplesmente desconsiderá-la, punindo os que dela participam e tratando seus sócios, mesmo que contra a vontade destes, como empregados fraudulentamente submetidos à estrutura societária.

Com o veto presidencial, se poderia imaginar que, a partir da nova lei, o fiscal poderia prescindir inteiramente do recurso ao Judiciário. O perigo maior é que os fiscais, agora, empunhando o veto obtido no Planalto, se julguem mesmo no direito de fazê-lo.

Tal conclusão, contudo, não é verdadeira. A legislação brasileira, felizmente, condiciona de forma exaustiva a ação do fiscal, nessas hipóteses, ao prévio controle judicial. O dispositivo era importante porque coerente com outras leis em vigor, especialmente com o artigo 129 da lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005, e com o artigo 50 do Código Civil.

O projeto de lei mostrava-se deliberadamente redundante, justamente para evitar que, no afã da fiscalização, a autoridade fazendária pudesse sentir-se legitimada a flechar à morte os princípios constitucionais da livre-iniciativa e da legalidade, nos quais se fundamentam a constituição das pessoas jurídicas.

A importância do dispositivo vetado, portanto, consiste menos em qualquer perspectiva de inovação e mais no valor simbólico de sua não exclusão, já que o veto coloca em dúvida a imprescindibilidade da via judicial para controles desse jaez.

Repita-se à exaustão: a autoridade fiscal pode e deve, com os aplausos de toda a sociedade brasileira, desconsiderar empresas fantasmas que nunca existiram, reprimir a atividade econômica simulada, denunciar e extirpar a vergonhosa exploração de trabalho escravo que pretende passar por relação empregatícia. Essas práticas criminosas devem ser reprimidas com todo o rigor, configuram tipos penais e suscitam a ação enérgica não só dos fiscais setoriais mas também do Ministério Público da União.

O cenário de delito e fraude, contudo, não justifica a atribuição à autoridade fazendária do poder de transformar inocentes em culpados e, segundo seu alvedrio, desconsiderar sociedades constituídas e com objeto lícito, sem controle judicial.

Mostra-se inconcebível, em última análise, que empresas legalmente constituídas sejam tratadas como fora-da-lei e que a autoridade fiscal possa, de maneira discricionária, determinar quais as pessoas jurídicas que devam ser preservadas e quais devam ser simplesmente eliminadas.
Daqui a importância do preceito vetado, que havia sido introduzido no projeto de lei -diga-se de passagem- por 62 senadores da República.

Segundo o artigo 66, parágrafo 4º, da Constituição, o veto presidencial poderá ainda ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos deputados e senadores em sessão conjunta do Congresso Nacional. Mais do que uma mera demonstração de força política, a resposta dos parlamentares, nesse caso, serviria para traduzir a preocupação com o equilíbrio entre os Poderes e com o amadurecimento da convivência democrática.

Muito já se disse sobre o pragmatismo das decisões políticas, as quais favorecem, muitas vezes, falsos maniqueísmos, de maneira que, para a opinião pública, as decisões tomadas pareçam refletir a luta do bem contra o mal. A visão simplista, no caso da Super-Receita, associaria o veto presidencial a um suposto incremento do poder de fiscalização, o que seria bom -cogitaria o cidadão comum- no cenário de falcatruas e impunidades.

A fiscalização do fiscal pelo Judiciário, contudo, fortalece o poder do Estado e impede que, por conta de arbitrariedades praticadas em nome da lei, a própria autoridade perca credibilidade. Assim como o célebre moleiro que, no século 18, opôs-se à pretendida demolição de seu moinho por Frederico 2º da Prússia, advertindo altivamente ao rei que ainda havia juízes em Berlim, é preciso que o Congresso Nacional lembre ao Executivo que, sem o Judiciário, não haverá atuação fiscal justa e eficaz.

Gustavo Tepedino é professor da Faculdade de Direito da UERJ

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