Google

15 de out. de 2007

Alberto da Cunha Melo

Cancioneiro para o Terceiro Mundo

Os povos mascates
vendem as sobras do céu,
das secas, dos saques
e das tempestades.
Vendem o lixo dourado
de todos os suis
nas esquinas dos cegos;
e, quando os cargueiros desovam,
na ferrugem dos portos,
sem pacotes de sonho,
os povos mascates
já não vendem mais nada,
compram viagens para dentro
de suas velhas
e provisórias derrotas
e, depois, voltam a vender
sapatos, pulseiras, colares
e esperanças de plástico.

Na vida malfeita,
ainda assim,
não há vagas,
falta o que fazer;
por isso, as legiões
de caçadores de calçada
(entre a loto e o assalto)
voltam sempre a crescer.
No mundo incompleto,
ainda assim,
aumentam-se os desertos,
e um pedaço de asa
apodrecida espedaça-se
entre pássaros negros
e os tais aventurados, os mansos.

Dezesseis por cento
de todos
desfrutam
setenta por cento
de tudo.
Estes números falam
do trigo
e suas tempestades;
falam do milho
e suas multidões.
Os cereais não sabem
que dividem a Terra
e curvam, solícitos,
para todos os ventos
os seus pendões.
Os minérios não sabem
que separam os homens
e moram mudos
no mundo imutável,
como os sabres,
as colheres
e as agulhas,
como o certo
e o errado
no fundo neutro
do mundo.

Nossos sábios são poucos
e sugam com seus bicos
franceses, e catarrentas
gargantas saxônicas,
as luzes opacas
de estranhos poentes,
e se exaltam diante
de títulos e túmulos,
tal os filhos tardos
e abortivos de Zaratrusta;
enquanto nas salas
de noturnas aulas
adormecem de sono
os que irão herdar,
de manhã a manhã,
as douradas correntes
do seu amanhecer.

Aprendemos a ler
a formação dos formigueiros
no leito pétreo dos rios,
anunciando mais cinza
na pele das folhas,
sob a eternidade do sol;
e aprendemos a ler
na pauta musical
dos caborés, corujas e bacuraus
o anúncio comercial
de nuvens inchadas
navegando silenciosas sobre nós;
e aprendemos a ler
no canto das cigarras
o desastre que a terra,
nossa única escola,
nos prepara;
e aprendemos a ler,
nos cadernos dos rostos
mais feios,
quando a lua, os celeiros
e os corações estão cheios.

Plantamos para longe
o açúcar mais branco,
a banana mais cheia,
o mais puro café.
Aprendemos a plantar
cedo, para muito longe.
Os planos estão satisfeitos
mas os homens choram
em suas choupanas de verdade.
Fizemos justiça ao metal
Que mereceu um visto para longe;
à planta mais eugênica,
demos-lhe uma embalagem de luxo
e um passaporte para a França.
Só os homens ficaram
com os filhos enfermos
e a terra longa
e alheia
para, sem fuga e sem amor,
continuar.

Nenhum comentário: